quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Graciete & Rosinda

Duas velhotas ultrapassadas dos oitenta, aproveitaram o dia para deambular nas urgências. As vozes não lhes tremiam e além da falta da fiada de incisivos, caninos, pré-molares e molares, nada de mais errado parecia haver naquele quadro que elas pintavam.
Deram ânimo à minha tarde (4 longas horas) no serviço de urgência.
Graciete, de robe verde pistachio, chapéu chique e chinelo revestido a pele de borrego, composto por dona ilustre meia grossa, passeava pela pequena sala, ora carregando infinitamente no botão da água, ora colocando, desajeitadamente as moedas na máquina dos snacks.
- Uma sandes americana, não queres pois não Rosinda? Também não trouxeste os dentes hoje, pois não?
- Olha Rosinda e se a gente bebesse aqui um chocolatinho quente, que lá em casa, logo à tarde só temos chá e bolachas? Que me dizes?

Entretanto toca o telefone e um eco gigante reveste a sala pequena e apinhada, de uma acústica triunfante.
Muito pausadamente, soletrando cada letra, envia um beijinho muito grande para quem lhe telefona, para a filha dela, para o marido da filha e para a pequena que fez anos anteontem.
No fim da conversa foge-lhe a boca para um beijão que nos intrigou a todos. Estaria Graciete profundamente apaixonada nesta fase da vida? Quiçá??? Talvez não.
O verde pistachio do robe talvez lhe escondesse a amargura do coração outrora irídico. A falta da dentadura, os beijos que não deu. O chapéu, uma alegria pavoneante que nunca a abandonou, apesar dos dias enfermos.
Ao telefone fez questão de preocupar o outro lado da linha. Ela e a Rosinda estavam bem, mas nas urgências. Estavam prestes a sair, mas ainda não sabiam quando.

Guardavam-se uma à outra. Graciete e Rosinda. Naquela tarde de urgência no hospital.

Carinhosamente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário